Search This Blog

Wednesday, June 15, 2011

Disseram-me as vozes

Disseram-me as vozes
vezes sem conta que eu era um  anormal.
“Almeida tu és diferente, Almeida tu és diferente
Almeida tu és diferente”
disseram-mo repetidamente,
— Diferente do quê? — perguntei
mas as vozes são parcas em respostas,
são de frases lapidares, afirmações,
e não dadas a diálogos
ou a interacções.

Disseram-me as vozes,
com solenidade profética,
que era para escrever em forma poética,
veja-se bem a dimensão do disparate
a inutilidade da tarefa, o dislate.
Poeta eu, que ideia mais bizarra, inútil e parada;
com tanta palavra tão soberbamente combinada,
com tanto e tão bom já devidamente escrito,
dito e inventado, havia de ser eu
a produzir mais rimado.

Disseram-me as vozes
que era para começar a alinhar palavras
sem ter de me preocupar
que elas me diriam o que dizer e até quando parar.
Era mentira. Elas apenas me deram temas,
pouco mais que princípios de poemas.
Depois obrigaram-me a trabalhar,
compungiram-me a escrever.
Se ao menos mos dessem todos inteiros, mas não,
só versos soltos e um trabalhão.

Disseram-me as vozes
ser esta a minha sina
o que até pode muito bem ser
embora disso não tenha a certeza
pois o que eu gosto é de estar sem fazer nada,
sem falar, só a ler, só a ver, só a ociar.
Mas a vozes disseram-me que não,
que era para começar, por mãos à obra,
trabalhar, fazer, que ainda havia muito,
disseram-me elas, para dizer.

Disseram-me as vozes,
que não são esquizofrenia
(senão estava sob medicação)
são apenas algazarra, cacofonia,
como se fosse eu a pensar
mas o que dizem não é meu, é poesia;
disseram-me, dizia eu, para escrever o que ouvia,
coisas a que não seria nunca capaz de chegar
ou de elaborar sozinho, que eu que não sou grande
como elas pretendem, sou só pequenininho.

Mas disseram-me as vozes,
que era para escrever e eu escrevi:
às vezes bem, às vezes mal,
às vezes banal. Mas escrevi.
Pedi para me darem assuntos e deram-me.
Outras vezes inventei-os eu, ou melhor,
inventaram elas e eu dei-lhes sentido e dono.
Escrevi de dia, de noite e às vezes durante o sono.
E pronto, já está. Tudo dito e escrito.

(Resposta pessoal à pergunta do Paulo, sobre a escrita)